domingo, 10 de outubro de 2010

A derrota nas urnas sob outro ponto de vista

Um grande mal do brasileiro é pensar que a política faz parte da nossa vida só a cada dois anos. Fora da época das eleições, é como se ela fosse apenas uma válvula de escape para as frustrações com os problemas da cidade, do estado ou do país. Essa mentalidade precisa mudar. Política é assunto para ser discutido no dia a dia – e mais até do que a novela ou o futebol, que não interferem diretamente no nosso bem-estar e nos rumos da sociedade.

Possivelmente, muitos daqueles “cidadãos” que ficaram aliviados com o fim da campanha são os primeiros a reclamar da ineficiência das autoridades. No caso dos lafaietenses, algo deve ser lembrado. A cidade, com seus 85.451 votantes (entre os quais me incluo), falhou mais uma vez na tentativa de eleger um representante para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) ou a Câmara Federal. E, embora não pareça para a maioria das pessoas, isso faz uma grande diferença.

Concordo que um deputado estadual ou federal não tem o poder tão absoluto de “revolucionar” uma cidade (e, quase sempre, falta vontade mesmo). Mas, por menos que ele faça, ainda assim o município sai ganhando, porque, nem que seja para manter sua base eleitoral e se reeleger, o sujeito vai querer proporcionar algum benefício para aqueles que o colocaram no poder. Basta acompanhar o noticiário e ver o quanto as cidades que têm representantes são favorecidas com verbas públicas, obras e financiamentos.

Faço essas considerações para tentar inverter o ponto de vista sobre a derrota de Lafaiete nas urnas, nesse filme repetido que já toma ares de tragicomédia (ou seria tragédia?). Não adianta continuar culpando o excesso de candidaturas e a ausência de diálogo entre os políticos. Falta o eleitor mostrar que é ele quem manda. Muito mais do que os postulantes, nós é que temos a força.

Já ficou comprovado que deixar a solução para os políticos é ineficaz. O Projeto Voto Ético (Prove) teve um papel importante, ao incentivar o voto em “candidatos da terra”. Mas o orgulho dos concorrentes falou mais alto. Ninguém abriu mão de sua candidatura. Os nanicos continuaram na disputa, tirando espaço daqueles que tinham chance de ganhar. O que se viu, como sempre, foi gente pensando que seu umbigo é o centro do mundo e que os interesses pessoais e partidários estão acima das urgências da cidade.

A lição nos foi dada e devemos aprender com ela. Nós, eleitores, temos que tomar as rédeas da situação e usar a nossa arma: o voto. Por isso defendo que a política vire assunto do cotidiano. Observar as lideranças, avaliar as atitudes das pessoas públicas, analisar quem pode ser um representante do município – tudo isso é fundamental para formar consciência e discernir entre o que é bom e o que é ruim para Lafaiete. Voto não deve ser decisão de última hora. Precisa ser fruto de embasamentos e reflexões.

Muitas lamúrias serão ouvidas nos próximos quatro anos. Mas reclamar sem agir é aceitar a própria desgraça. Portanto, temos 1.461 dias para construir o nosso voto e mostrar, em 2014, quem verdadeiramente tem o poder no processo eleitoral democrático. Se nos mobilizarmos desde agora, teremos capacidade de eleger no mínimo um deputado, para assumir as bandeiras da comunidade. Com certeza, ao menos uma pessoa estará capacitada para ser nossa porta-voz.

Além disso, o eleitor precisa se libertar de hábitos ultrapassados que ainda impregnam a política brasileira com ranços de coronelismo e subserviência. Voto não pode ser trocado por nenhum tipo de favor. O bem coletivo é que deve ser colocado em primeiro lugar. A política existe para isso. E está aí a razão maior para ela fazer parte das nossas conversas diárias. Afinal, se preocupar sobre saúde, educação, segurança pública, habitação e emprego é mais urgente do que discutir sobre quem será assassinado na novela das oito ou qual time vai cair para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.


  • Artigo de minha autoria publicado na edição do jornal "Correio da Cidade" (Conselheiro Lafaiete) de 9.10.10.

sábado, 28 de agosto de 2010

A vida indireta

"A civilização industrial vem acelerando tremendamente o processo de vida indireta.
Que é vida indireta? É a vida vicária.
Que é vida vicária? É a vida delegada a representantes.
Que representantes podem ser os delegados da vida? Os signos.
Que signos? De todos os tipos.

Em lugar da coisa, a imagem ou a descrição da coisa; em lugar da ação, a imagem da ação.
Tudo vai virando signo e linguagem em nossas vidas, a ponto de não sabermos mais distinguir o que chamamos de vida daquilo que exprime essa mesma vida. [...]
Numa sociedade de consumo, consumir é que é a vida."


(Décio Pignatari)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

domingo, 15 de agosto de 2010

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Vida fumê

Não sei o que se passou na cabeça dos dois irmãos ao verem o mendigo deitado na calçada do prédio residencial do bairro de classe média. Mas posso imaginar. Os dois, que pareciam voltar da aula de natação acompanhados pela babá, fixaram o olhar no morador de rua ao passarem ao lado dele. Ensaiaram até parar, mas foram logo puxados pela empregada – uma mulher com cerca de 30 anos, de pele negra, assim como o homem quase desmaiado no chão, provavelmente após uma noite de bebedeira. Estava desperto, mas a aparência de seu rosto era de alguém próximo da morte.

Os olhares do menino e da menina, na faixa dos 5 ou 6 anos, demonstraram a compaixão pura de quem ainda desconhece as agruras deste mundo, as heranças malditas do capitalismo, as ignorâncias de quem cresceu. As faces pueris eram o retrato do choque: aquela cena não faz parte do cotidiano “branco classe média”. Estão mais acostumadas à vida fumê, aquela em que as barreiras cinzas impedem as retinas de enxergarem as cores feias e bonitas que criam as matizes do mundo. Não o mundo onde o ar-condicionado mantém a temperatura sempre agradável, mas aquele onde o calor está sempre latente – o calor das injustiças, indiferenças e desigualdades.

Na desbotada vida fumê, em que a realidade corre à velocidade do acelerador do carro e o ar de verdade é incapaz de ultrapassar os vidros fechados, os mendigos são ameaças, a sujeira das ruas não incomoda, o odor fétido da podridão mundana passa longe das narinas. Crianças mimadas pelos pais com presentes caros, computadores de última geração e outros luxos corriqueiros realmente se chocam ao darem de cara com a marginalidade, a “subvida”. Os olhares dos irmãos, que caminhavam pela rua vestindo roupão, não mentiam: a realidade nua e crua, produto de um “sistema” que ninguém sabe definir direito o que é, assusta.

É pena constatar que aqueles que poderiam fazer algo para, quem sabe, combater essa degradação humana parecem ser vítimas de uma cegueira. Não a cegueira fisiológica, mas aquela que os impede de enxergar o que precisa ser mudado. O menino e a menina notaram o mendigo e se compadeceram dele porque lhes falta o filtro que torna invisíveis todas as coisas desagradáveis. O olhar puro dos dois, além de refletir as ideias moldadas pelas bonitas morais dos contos de fada, carregava a capacidade de perceber o homem ao chão como um ser que precisa de ajuda, e não um predador pronto para atacar os ditos “civilizados”.

Não fosse pelo braço que os levava para longe do morador de rua, o menino e a menina teriam dialogado com o coitado. Perguntariam o que houve com ele? Ofereceriam ajuda? Não sei. A babá, certamente instruída pelos patrões e com os pensamentos adestrados para afastarem tudo que é ameaçador, matou a possibilidade de uma conversa entre os dois mundos. Ao mesmo tempo, minou naqueles dois pequenos seres a chance de quererem conhecer o “outro lado” da vida fumê, pelo menos naquele momento. E os irmãos se afastaram – com o pescoço virado para trás para se certificarem da situação daquele homem e, suponho, sentirem dó dele. É... Temos muito a aprender com as crianças.