terça-feira, 27 de setembro de 2011

Ah, vida real

A vida de repórter possibilita ir lugares aonde você nunca iria e conhecer gente que você nunca conheceria se não fosse jornalista. De dois meses para cá, tenho experimentado essas sensações com bastante intensidade. É daí que vem a constatação de que a vida real – aquela feita por gente de carne e osso e pequenos momentos nem sempre notados pela maioria das pessoas – é bem mais interessante que a vida virtual, em que as emoções não conseguem transpor a tela.

Uma menina, na sua mais pura inocência, corresponde ao aceno de um morador de rua bêbado e sujo que passa ao seu lado na rua. Uma bonita mulher de óculos escuros ignora o possível perigo e abre o vidro do carro para atender ao pedido de um garoto com seus 10 ou 11 anos, aparentemente drogado, que lhe grita: “Me dá chips, dona?”. Pais encaram o burburinho na saída da escola para buscar os filhos pré-adolescentes que conversam animadamente em grupos (certamente, sobre assuntos que nada têm a ver com o insano mundo adulto).

São exemplos de cenas que vi nos últimos dias – e das quais eu havia me distanciado nos últimos anos. A vida na redação tem esse lado negativo e até paradoxal. Por mais que, antes, eu ficasse sabendo de tudo praticamente em tempo real (graças à conexão ininterrupta com portais de notícias, Twitter, Facebook), não era a mesma coisa. Ultrapassar o vidro fumê é saboroso. Nada substitui o contato com as múltiplas cores da realidade. Isso é matéria-prima para o repórter. A vida sem mediação, aquela que acontece bem na frente dos olhos, será sempre mais interessante e ardente. É nela que brotam os sentimentos.

Ver o correr da vida, em toda a sua ordinariedade e bestialidade, tem lá seus encantos. É o que estou redescobrindo agora, com quase o mesmo olhar encantado de uma criança que reconhece o mundo. E, afinal, são esses instantes quase imperceptíveis do dia a dia que pontuam nossa existência. São eles que vão ficar. Memórias costumam ser preenchidas mais pelos pequenos fatos do que pelos grandes eventos. Talvez porque os pequenos fatos carreguem a emoção verdadeira pela qual tanto procuramos. No fundo, o que a gente quer são mais cafés descompromissados e menos banquetes teatralizados.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Japonês que mora no Brasil relembra infância em Fukushima e sua história como imigrante

Isao Watanabe, que deixou o Japão há 50 anos, acompanha pelo noticiário a tragédia em seu país e se preocupa com os parentes que vivem lá

Andressa Lopes
Joelmir Tavares

4 de abril de 2011

O mundo lança os olhos para Fukushima, no Japão, por causa do desastre na usina nuclear da província. Mas, para o japonês Isao Watanabe, de 77 anos, aquilo que está ameaçado é o lugar onde ele passou a infância, conviveu com a família e aprendeu a trabalhar. Morando no Brasil há 50 anos, ele acompanha o noticiário pela televisão e lamenta ter que cancelar a viagem à terra natal programada para outubro deste ano.

“Nem posso mais nadar no mar daquela região ou pisar aquela terra, pelo menos por enquanto”, afirma Watanabe, referindo-se ao isolamento imposto pelo governo japonês em um raio de 20 km no entorno da usina nuclear de Fukushima, afetada pelo terremoto de magnitude 8,9 na escala Richter, seguido de tsunami, que arrasou parte do país no dia 11 de março. O sistema de refrigeração da usina foi parcialmente destruído, originando explosões em três reatores e a consequente liberação de material radioativo.

A tragédia natural – que deixou mais de 13 mil mortos e 16 mil desaparecidos, segundo a agência de notícias BBC – preocupa o japonês naturalizado brasileiro. Muitos parentes ainda vivem no Japão, incluindo o irmão mais velho, um fazendeiro da região de Fukushima que teve de abandonar sua propriedade e se
instalar temporariamente na capital Tóquio, e a mãe, de 101 anos. “Felizmente, todos lá estão bem de saúde”, diz o morador de Belo Horizonte, que tem cinco irmãos residindo naquele país.

Embora ainda esteja comovido com o desastre, Watanabe vê a vida de maneira otimista. Nem as dificuldades que surgiram em seu caminho desde a chegada ao Brasil são suficientes para desanimá-lo. Praticante da Seicho-No-Ie, filosofia de origem japonesa que prega o amor a Deus, ao ser humano e à natureza, o aposentado se lembra de todos os desafios que venceu em 50 anos no Brasil.


Viagem para o Brasil

Isao Watanabe deixou o Japão aos 22 anos de idade para trabalhar em uma fazenda de café em Araçatuba, no interior do estado de São Paulo. À época, 50 famílias fizeram o mesmo caminho. “Na verdade, era para eu ir para os Estados Unidos, mas, como o Japão perdeu a guerra [Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945], ficou impossível migrar para lá”, recorda. Watanabe já tinha grande experiência em agropecuária, porque desde criança ajudava o pai nas tarefas da fazenda, na região de Fukushima, onde o cultivo de arroz e verduras é tradicional.
De Araçatuba, ele se mudou para São Paulo, onde foi funcionário em um comércio durante alguns meses. Chegou a Belo Horizonte para trabalhar em uma cooperativa de criação de aves, já que conhecia muito sobre manejo de galinhas. Cerca de seis anos depois, com a decadência do negócio, montou sua própria granja de codornas, que exigia pouco investimento, mas tinha lucro certo. Cinco anos mais tarde, conseguiu comprar uma fazenda, no município de Betim, onde criava animais, como galinhas e porcos.

O fim da propriedade é um dos episódios tristes de sua vida. O agropecuarista perdeu mercado, segundo ele, por causa da falta de políticas de apoio do governo estadual e da vinda de grandes empresas criadoras de animais para Minas. Como se não bastasse, teve que ceder a fazenda para a ex-mulher, uma brasileira chamada Maria Lúcia, com quem ele se casou aos 27 anos e teve seis filhos. “Por ignorância minha, o advogado dela conseguiu que ela ficasse com a posse”, conta.

Abandonado pela esposa, Watanabe encarou a missão de cuidar dos filhos e priorizou a educação deles. Foi por isso que se mudou para o bairro Coração Eucarístico, para que as crianças pudessem estudar em boas escolas públicas da capital. Hoje, todos os filhos têm curso superior e estão bem empregados, para a felicidade do patriarca, que não tem do que se queixar em relação ao país que o acolheu. “Eu me sinto praticamente um brasileiro. Sou muito feliz aqui”, reconhece, acrescentando nunca ter sofrido qualquer tipo de discriminação por ser estrangeiro.

Com o encerramento das atividades na fazenda, Watanabe se fixou de vez no bairro da Região Noroeste de Belo Horizonte. Voltou algumas vezes ao Japão, inclusive para uma temporada mais longa, na qual aproveitou para trabalhar. Com o dinheiro que trouxe de lá, construiu um conjunto de quitinetes no quintal de sua casa, que até hoje atendem principalmente estudantes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e é sua fonte de renda. Aposentado como fazendeiro, ele diz que recebe uma pensão relativamente baixa do governo. O pouco conhecimento sobre as leis brasileiras o prejudicou na hora de buscar a aposentadoria.

Watanabe ainda ajuda a cuidar do pensionato – que agora tem 35 quitinetes de aluguel –, embora tenha diminuído o ritmo de trabalho recentemente, depois de sofrer um derrame cerebral, que não deixou sequelas graves. Os problemas de colesterol e pressão alta também o fazem se preocupar mais com a saúde. A administração do negócio acabou sendo entregue a um dos genros. “Nesses anos todos, muitos inquilinos passaram por aqui. Chegam pessoas novas a cada semestre. Todos os quartos estão sempre alugados”, relata.

Tradições

Em quase cinco décadas no Brasil, Watanabe manteve alguns costumes do país de origem, mas também incorporou novos hábitos. Ele fala um português razoável, suficiente para se comunicar com certa facilidade. Com a atual mulher, a também japonesa Yoko, ele só conversa em japonês. Os dois, que estão casados há cerca de dez anos, chegaram ao Brasil na mesma época. Cada um teve um casamento, Yoko chegou a morar no Japão durante um tempo, Watanabe também seguiu seu rumo.

Anos mais tarde, já separados, eles se reencontraram em Belo Horizonte. Yoko tratou um problema de saúde dele usando o shiatsu, uma técnica de massagem japonesa. Após a união, Watanabe retomou alguns hábitos orientais, principalmente na alimentação. As refeições, que antes tipicamente brasileira, passaram a ser feitas quase exclusivamente com a comida tradicional da terra natal do casal. “Aqui no Brasil, podemos comprar todos os ingredientes da culinária japonesa, tudo fresquinho”, observa ele, que aboliu carne vermelha e alimentos gordurosos da dieta, para controlar as doenças surgidas com a idade.

A relação com os brasileiros, segundo ele, sempre foi de amizade. Watanabe se orgulha de ter ajudado a modernizar a agropecuária no estado. “Aqui ainda estava muito atrasado quando eu cheguei. Ensinei muita gente a fazer a criação de animais e o cultivo de vegetais do jeito que era feito no Japão”, relembra. Aos colegas interessados, ele fazia questão de ensinar a lutar judô, a arte marcial mais popular da Terra do Sol Nascente.

Apesar de ainda estar ligado a algumas tradições de sua terra, o japonês criou os filhos como se fossem brasileiros. Dos seis – todos com nomes orientais –, só o mais velho aprendeu a falar o idioma nipônico, depois de passar dois anos morando no Japão a trabalho. Watanabe reconhece que os dois povos têm muitas diferenças de comportamento. Mas, agora, já não estranha o jeito expansivo e agitado dos brasileiros. Ajudado por esse povo, ele, que chegou ao Brasil sem dinheiro e perspectiva, construiu sua história.

Com uma rotina movimentada, o aposentado faz pequenos trabalhos nas quitinetes, caminha todas as manhãs, recebe visitas regulares dos filhos e netos, encontra os amigos na praça do bairro, vê televisão e lê jornal. Yoko se divide entre as tarefas domésticas e os atendimentos como massagista. Watanabe só tem a frustração de não poder retornar em breve a Fukushima. Ele esteve lá pela última vez há dois anos e acredita que uma nova viagem só poderá ser feita em 2013 ou 2014. “Eu tenho fé de que ainda vou voltar”, afirma, esperançoso.

  • Reportagem produzida para a disciplina Comunicação e Conjuntura Internacional, 8º período de Jornalismo - PUC Minas. Publicada originalmente no site de notícias "O Mundo".
  • Foto: Joelmir Tavares.

domingo, 10 de outubro de 2010

A derrota nas urnas sob outro ponto de vista

Um grande mal do brasileiro é pensar que a política faz parte da nossa vida só a cada dois anos. Fora da época das eleições, é como se ela fosse apenas uma válvula de escape para as frustrações com os problemas da cidade, do estado ou do país. Essa mentalidade precisa mudar. Política é assunto para ser discutido no dia a dia – e mais até do que a novela ou o futebol, que não interferem diretamente no nosso bem-estar e nos rumos da sociedade.

Possivelmente, muitos daqueles “cidadãos” que ficaram aliviados com o fim da campanha são os primeiros a reclamar da ineficiência das autoridades. No caso dos lafaietenses, algo deve ser lembrado. A cidade, com seus 85.451 votantes (entre os quais me incluo), falhou mais uma vez na tentativa de eleger um representante para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) ou a Câmara Federal. E, embora não pareça para a maioria das pessoas, isso faz uma grande diferença.

Concordo que um deputado estadual ou federal não tem o poder tão absoluto de “revolucionar” uma cidade (e, quase sempre, falta vontade mesmo). Mas, por menos que ele faça, ainda assim o município sai ganhando, porque, nem que seja para manter sua base eleitoral e se reeleger, o sujeito vai querer proporcionar algum benefício para aqueles que o colocaram no poder. Basta acompanhar o noticiário e ver o quanto as cidades que têm representantes são favorecidas com verbas públicas, obras e financiamentos.

Faço essas considerações para tentar inverter o ponto de vista sobre a derrota de Lafaiete nas urnas, nesse filme repetido que já toma ares de tragicomédia (ou seria tragédia?). Não adianta continuar culpando o excesso de candidaturas e a ausência de diálogo entre os políticos. Falta o eleitor mostrar que é ele quem manda. Muito mais do que os postulantes, nós é que temos a força.

Já ficou comprovado que deixar a solução para os políticos é ineficaz. O Projeto Voto Ético (Prove) teve um papel importante, ao incentivar o voto em “candidatos da terra”. Mas o orgulho dos concorrentes falou mais alto. Ninguém abriu mão de sua candidatura. Os nanicos continuaram na disputa, tirando espaço daqueles que tinham chance de ganhar. O que se viu, como sempre, foi gente pensando que seu umbigo é o centro do mundo e que os interesses pessoais e partidários estão acima das urgências da cidade.

A lição nos foi dada e devemos aprender com ela. Nós, eleitores, temos que tomar as rédeas da situação e usar a nossa arma: o voto. Por isso defendo que a política vire assunto do cotidiano. Observar as lideranças, avaliar as atitudes das pessoas públicas, analisar quem pode ser um representante do município – tudo isso é fundamental para formar consciência e discernir entre o que é bom e o que é ruim para Lafaiete. Voto não deve ser decisão de última hora. Precisa ser fruto de embasamentos e reflexões.

Muitas lamúrias serão ouvidas nos próximos quatro anos. Mas reclamar sem agir é aceitar a própria desgraça. Portanto, temos 1.461 dias para construir o nosso voto e mostrar, em 2014, quem verdadeiramente tem o poder no processo eleitoral democrático. Se nos mobilizarmos desde agora, teremos capacidade de eleger no mínimo um deputado, para assumir as bandeiras da comunidade. Com certeza, ao menos uma pessoa estará capacitada para ser nossa porta-voz.

Além disso, o eleitor precisa se libertar de hábitos ultrapassados que ainda impregnam a política brasileira com ranços de coronelismo e subserviência. Voto não pode ser trocado por nenhum tipo de favor. O bem coletivo é que deve ser colocado em primeiro lugar. A política existe para isso. E está aí a razão maior para ela fazer parte das nossas conversas diárias. Afinal, se preocupar sobre saúde, educação, segurança pública, habitação e emprego é mais urgente do que discutir sobre quem será assassinado na novela das oito ou qual time vai cair para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.


  • Artigo de minha autoria publicado na edição do jornal "Correio da Cidade" (Conselheiro Lafaiete) de 9.10.10.

sábado, 28 de agosto de 2010

A vida indireta

"A civilização industrial vem acelerando tremendamente o processo de vida indireta.
Que é vida indireta? É a vida vicária.
Que é vida vicária? É a vida delegada a representantes.
Que representantes podem ser os delegados da vida? Os signos.
Que signos? De todos os tipos.

Em lugar da coisa, a imagem ou a descrição da coisa; em lugar da ação, a imagem da ação.
Tudo vai virando signo e linguagem em nossas vidas, a ponto de não sabermos mais distinguir o que chamamos de vida daquilo que exprime essa mesma vida. [...]
Numa sociedade de consumo, consumir é que é a vida."


(Décio Pignatari)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

domingo, 15 de agosto de 2010

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Vida fumê

Não sei o que se passou na cabeça dos dois irmãos ao verem o mendigo deitado na calçada do prédio residencial do bairro de classe média. Mas posso imaginar. Os dois, que pareciam voltar da aula de natação acompanhados pela babá, fixaram o olhar no morador de rua ao passarem ao lado dele. Ensaiaram até parar, mas foram logo puxados pela empregada – uma mulher com cerca de 30 anos, de pele negra, assim como o homem quase desmaiado no chão, provavelmente após uma noite de bebedeira. Estava desperto, mas a aparência de seu rosto era de alguém próximo da morte.

Os olhares do menino e da menina, na faixa dos 5 ou 6 anos, demonstraram a compaixão pura de quem ainda desconhece as agruras deste mundo, as heranças malditas do capitalismo, as ignorâncias de quem cresceu. As faces pueris eram o retrato do choque: aquela cena não faz parte do cotidiano “branco classe média”. Estão mais acostumadas à vida fumê, aquela em que as barreiras cinzas impedem as retinas de enxergarem as cores feias e bonitas que criam as matizes do mundo. Não o mundo onde o ar-condicionado mantém a temperatura sempre agradável, mas aquele onde o calor está sempre latente – o calor das injustiças, indiferenças e desigualdades.

Na desbotada vida fumê, em que a realidade corre à velocidade do acelerador do carro e o ar de verdade é incapaz de ultrapassar os vidros fechados, os mendigos são ameaças, a sujeira das ruas não incomoda, o odor fétido da podridão mundana passa longe das narinas. Crianças mimadas pelos pais com presentes caros, computadores de última geração e outros luxos corriqueiros realmente se chocam ao darem de cara com a marginalidade, a “subvida”. Os olhares dos irmãos, que caminhavam pela rua vestindo roupão, não mentiam: a realidade nua e crua, produto de um “sistema” que ninguém sabe definir direito o que é, assusta.

É pena constatar que aqueles que poderiam fazer algo para, quem sabe, combater essa degradação humana parecem ser vítimas de uma cegueira. Não a cegueira fisiológica, mas aquela que os impede de enxergar o que precisa ser mudado. O menino e a menina notaram o mendigo e se compadeceram dele porque lhes falta o filtro que torna invisíveis todas as coisas desagradáveis. O olhar puro dos dois, além de refletir as ideias moldadas pelas bonitas morais dos contos de fada, carregava a capacidade de perceber o homem ao chão como um ser que precisa de ajuda, e não um predador pronto para atacar os ditos “civilizados”.

Não fosse pelo braço que os levava para longe do morador de rua, o menino e a menina teriam dialogado com o coitado. Perguntariam o que houve com ele? Ofereceriam ajuda? Não sei. A babá, certamente instruída pelos patrões e com os pensamentos adestrados para afastarem tudo que é ameaçador, matou a possibilidade de uma conversa entre os dois mundos. Ao mesmo tempo, minou naqueles dois pequenos seres a chance de quererem conhecer o “outro lado” da vida fumê, pelo menos naquele momento. E os irmãos se afastaram – com o pescoço virado para trás para se certificarem da situação daquele homem e, suponho, sentirem dó dele. É... Temos muito a aprender com as crianças.