quinta-feira, 10 de junho de 2010

Vida fumê

Não sei o que se passou na cabeça dos dois irmãos ao verem o mendigo deitado na calçada do prédio residencial do bairro de classe média. Mas posso imaginar. Os dois, que pareciam voltar da aula de natação acompanhados pela babá, fixaram o olhar no morador de rua ao passarem ao lado dele. Ensaiaram até parar, mas foram logo puxados pela empregada – uma mulher com cerca de 30 anos, de pele negra, assim como o homem quase desmaiado no chão, provavelmente após uma noite de bebedeira. Estava desperto, mas a aparência de seu rosto era de alguém próximo da morte.

Os olhares do menino e da menina, na faixa dos 5 ou 6 anos, demonstraram a compaixão pura de quem ainda desconhece as agruras deste mundo, as heranças malditas do capitalismo, as ignorâncias de quem cresceu. As faces pueris eram o retrato do choque: aquela cena não faz parte do cotidiano “branco classe média”. Estão mais acostumadas à vida fumê, aquela em que as barreiras cinzas impedem as retinas de enxergarem as cores feias e bonitas que criam as matizes do mundo. Não o mundo onde o ar-condicionado mantém a temperatura sempre agradável, mas aquele onde o calor está sempre latente – o calor das injustiças, indiferenças e desigualdades.

Na desbotada vida fumê, em que a realidade corre à velocidade do acelerador do carro e o ar de verdade é incapaz de ultrapassar os vidros fechados, os mendigos são ameaças, a sujeira das ruas não incomoda, o odor fétido da podridão mundana passa longe das narinas. Crianças mimadas pelos pais com presentes caros, computadores de última geração e outros luxos corriqueiros realmente se chocam ao darem de cara com a marginalidade, a “subvida”. Os olhares dos irmãos, que caminhavam pela rua vestindo roupão, não mentiam: a realidade nua e crua, produto de um “sistema” que ninguém sabe definir direito o que é, assusta.

É pena constatar que aqueles que poderiam fazer algo para, quem sabe, combater essa degradação humana parecem ser vítimas de uma cegueira. Não a cegueira fisiológica, mas aquela que os impede de enxergar o que precisa ser mudado. O menino e a menina notaram o mendigo e se compadeceram dele porque lhes falta o filtro que torna invisíveis todas as coisas desagradáveis. O olhar puro dos dois, além de refletir as ideias moldadas pelas bonitas morais dos contos de fada, carregava a capacidade de perceber o homem ao chão como um ser que precisa de ajuda, e não um predador pronto para atacar os ditos “civilizados”.

Não fosse pelo braço que os levava para longe do morador de rua, o menino e a menina teriam dialogado com o coitado. Perguntariam o que houve com ele? Ofereceriam ajuda? Não sei. A babá, certamente instruída pelos patrões e com os pensamentos adestrados para afastarem tudo que é ameaçador, matou a possibilidade de uma conversa entre os dois mundos. Ao mesmo tempo, minou naqueles dois pequenos seres a chance de quererem conhecer o “outro lado” da vida fumê, pelo menos naquele momento. E os irmãos se afastaram – com o pescoço virado para trás para se certificarem da situação daquele homem e, suponho, sentirem dó dele. É... Temos muito a aprender com as crianças.